Trancafiada em seu quarto, sabia que o fim estava próximo.
Jamais deixou que isso a abalasse, no inverso da cousa, lutou contra tudo.
Mas foi vencida pela vontade daquele que a tudo se deve. Acabara por aceitar sua condição de pré-morte.
Esmaecida e sem forças decide usar aquilo que ainda estava bem, a mente.
O exercício da mente era sua tarefa final: rememorar cronologicamente a vida.
Relembrar a pouca vida que lhe foi dada para viver.
De olhos fechados e com sol a bater sobre seu rosto fez do vermelho das pálpebras as cortinas de seu teatro.
Percebera de início que Deus tirou-lhe tudo que era material, mas deixou intácto e conservado todo o pensar e sentir. Agradeceu-Lhe por isso. Ali estava completamente viva. Ali era criança, adolescente e adulta ao mesmo tempo, sem lógica. A peça era sua, a plateia e a protagonista eram ela, somente ela. Não havia segredos ou falsidades...
"Viver das lembranças é como estar num vazio sem fim, não há perspectiva de nada, tampouco sentido", refletira.
Entristecida, estava a chorar sobre os lençois manchados de sua cama, queria a materialidade das coisas para ter o impulso do pensar, do sentir, da memória, das paixóes.
Os gostos, os sentidos, os cheiros, eram fracos e insossos, naquele mundo.
Desamparada. Sua mente deixara-lhe, sozinha.
Ela, a dor, a saudade do futuro partir, o medo, eram um só, agora.
Toda a aceitação anterior fora-lhe tirada.
E nada pode fazer.
Passaram-se dias e noites.
O choro e dor eram sua única reação ao mundo sensível.
"Nada, nada irá tirar-me deste mundo. A vida após a morte é vácuo."
Sua luta era contra o corpo já morto a prendê-la.
A ininteligibilidade da realidade era-lhe presente naquela noite.
A mente arrastava-lhe para o poço, onde as lamentações são insensíveis.
O suor do corpo febril deu lugar a frieza do sangue parado.
O último suspiro fora seu último alento.
A mente por sua vez, materializou-se.
E a ela apareceu. Nela fez sentir todas as boas coisas. Tudo estava brilhando e vívido.
De repente, a noite virou sol e do clarão dourado a emanar de todo o quarto via-se a mão do seu criador a tocar-lhe a fronte.
Ela renasceu naquela noite...
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